RANILSON FRANÇA



*(Pilar AL 10/6/1953 - Maceió AL 14/8/2006 ) Folclorista, professor. Professor do CESMAC. Presidiu a Comissão Alagoano de Folclore, bem como, a Associação dos Folguedos Populares de Alagoas. Sócio do IHGA, empossado em 25/10/2000, na cadeira 46, da qual é patrono João Craveiro Costa. Publicou: Folguedos e Danças das Alagoas, in Arte Popular de Alagoas, de Tânia Pedrosa, p. 26-46.

*Segundo o site ABC das Alagoas



Ranilson França: Um mestre guerreiro no meio de tantos mestres
Segue trechos de uma entrevista dele feita pelo Jornalista Lelo Macena publicada na Gazeta de Alagoas em 2005.

26/07/2005
 "Digo que Alagoas é um estado privilegiado"
DISCÍPULO DE THÉO BRANDÃO E ALOÍSIO VILELA, O PROFESSOR RANILSON FRANÇA NÃO CANSA DE AFIRMAR: NOSSO ESTADO POSSUI A MAIOR DIVERSIDADE DE FOLGUEDOS DO PAÍS
LELO MACENA
Determinado a conferir in loco as manifestações de nossa cultura popular, o professor Ranilson França chegou a bater três vezes o motor de seu Fusca a álcool, fiel companheiro de viagem.
Empreitadas desse tipo lhe renderam um acervo considerável de fitas e um conhecimento profundo acerca das potencialidades e dos problemas que afetam diretamente o imaginário do povo alagoano.
Herdeiro de uma das mais reconhecidas escolas de pesquisa da cultura popular - onde constam nomes como Aloísio Vilela, Théo Brandão, Manuel Diégues Júnior, José Pimentel Amorim, José Maria de Melo, Félix Lima Júnior, José Maria Tenório Rocha e Pedro Teixeira, com muitos dos quais conviveu -, Ranilson França soube como poucos compreender a riqueza do processo criativo que nasce no seio das comunidades.
Atual presidente da Comissão Alagoana de Folclore (criada por Théo Brandão em 1948), presidente da Associação dos Folguedos Populares de Alagoas (Asfopal), coordenador de Ação Cultural da Secretaria Estadual de Educação e assessor de assuntos estudantis e comunitários do Cesmac, o incansável Ranilson se divide em mil para manter viva a cultura alagoana.
Em entrevista à Gazeta, ele fala de sua paixão pelos folguedos alagoanos, lembra da amizade com Théo Brandão e aponta soluções - em sua avaliação, simples - para alguns dos problemas que atingem nossos grupos folclóricos.
Gazeta - Que folclore é esse no qual o senhor acredita e pelo qual tem trabalhado tanto?
Ranilson França - Folclore é cultura viva. Quando falo do folclore alagoano, não falo com saudosismo. Falo das manifestações atuais, com todas as influências que elas têm. Folclore não quer dizer coisa velha, antiga. A dinamicidade é que permite a sobrevivência. Mesmo com toda a globalização, os guerreiros, os pastoris e os reisados sobrevivem nas periferias. É isso o que a gente acredita que seja o folclore, uma coisa presente e dinâmica. Hoje dificilmente você vai encontrar um guerreiro no qual a sanfona não seja eletrificada. Todos os grupos estão aderindo aos elementos contemporâneos. É a cultura viva do povo que nós não podemos deixar de reconhecer.
Como surgiu essa sua paixão pelas manifestações populares de Alagoas?
Tendo sido menino pobre na Chã do Pilar, onde me criei cercado por todas essas manifestações. Na época eu não sabia o que era folclore, mas já participava. Não havia luz elétrica nem água encanada. Isso tudo já era pretexto para acontecer alguma coisa. Cresci vendo as novenas de Santo Antônio e os terços do mês de maio, que eram rezados na casa da minha tia, ainda viva e com 95 anos. Apaixonei-me vendo desde criança os folguedos natalinos na casa de meu avô, os cantadores de cordel que, enquanto faziam cangalhas, cantavam a História do Pavão Misterioso e O Romance da Donzela Teodora, que são grandes clássicos da literatura de cordel.
Quando o sr. começou a pesquisar a cultura popular?
Eu vim estudar no Colégio Guido, com o pe. Teófanes de Barros, e começamos a trazer essas questões para o colégio. Na época, ao lado do jornalista Rosivan Vanderley, nós fundamos o Museu de Folclore Manoel Neném. Também tive o prazer de conhecer o professor Théo Brandão, não como meu professor, mas já aposentado da Universidade [Federal de Alagoas]. A gente se reunia para conversar sobre essas coisas e eu descobri nele um mestre que gostava de transmitir seus conhecimentos. Ele me incentivou muito e hoje ainda guardo com muito carinho a edição número 1 do Dicionário do Folclore Brasileiro do professor Luís da Câmara Cascudo, que o autografou para ele e para mim. Também tive contato com Aloísio Vilela, José Maria Tenório Rocha e com o professor Pedro Teixeira. Devo minha formação a esses grandes nomes.
Como o sr. avalia a cultura popular alagoana hoje?
Levando em conta o fato de que nós vivemos num País globalizado, em que a tendência é descolorir a cultura, digo que Alagoas é um estado privilegiado. Mesmo o Brasil não tendo uma política para o folclore, nosso estado ainda consegue manter a maior diversificação de folguedos do País. Hoje, no mapa de Alagoas, esses grupos estão bem definidos.Quais os principais problemas dos grupos de folguedos alagoanos atualmente?Nós identificamos alguns pontos fundamentais para a preservação desses grupos: o primeiro é a necessidade de uma sede. Eles precisam de espaço físico. Não precisa ser nada sofisticado, mas um lugar simples, onde eles possam ensaiar e se organizar. O segundo ponto é a constituição de um calendário como elemento motivador. Você vai ensaiar sabendo que terá um número de apresentações durante o ano. O terceiro ponto é a ajuda de custo para a compra de material. Seria um grande passo na direção da preservação dos nossos folguedos.
O que o poder público tem feito efetivamente pela preservação de nossas manifestações populares?
Existem tentativas de soluções para nossos problemas, mas ainda são coisas embrionárias. Às vezes, em vez de ajudar, o poder público contribui para o desaparecimento dos grupos folclóricos. Eu gostaria que a Prefeitura de Maceió pudesse pegar esse mote dos festejos natalinos e fazer uma grande festa de Natal, com grupos como pastoril, reisado e chegança. Preencheria uma lacuna no calendário de eventos da cidade e abriria espaço para os nossos grupos, que ensaiam tanto mas não têm onde se apresentar.Grande parte dos nossos mestres de folguedos vive de salário mínimo, o que torna difícil a manutenção de seus folguedos. Como o sr. vê essa realidade?
Houve uma transformação na dinâmica sociocultural. Antigamente esses grupos folclóricos eram montados primeiro nos engenhos. Depois, eles passaram para uma fase em que aparecia um “patrocinador”, como é o caso da Joana Gajuru, que investia seus recursos nos folguedos. Os que tinham um dinheirinho a mais sempre aglutinavam em torno de si a questão do guerreiro. Mas essa figura desapareceu. Por outro lado, é aí que aparece o aspecto ritualístico. Todos os que participam dos guerreiros, reisados e pastoris encaram a dança como um ritual, um compromisso. Mesmo ganhando pouco, deixam de comprar uma caçarola ou uma panela para comprar a fita do guerreiro. Outro dia eu encontrei a dona Maria Flor e ela vinha com um manto de cinco metros para o guerreiro dela: ‘Seu Ranilson, peguei meu décimo terceiro e comprei’. É uma coisa meio milagrosa. Eles sempre vão dar um jeito de cumprir com o compromisso. Só vão parar de dançar quando morrerem.
Como garantir a continuidade dos folguedos depois que esses mestres, muitos já octogenários, desaparecerem?
Nós sabemos que todo o ser humano um dia vai ter que partir para outro mundo. Ano passado, tivemos várias perdas: Maria do Carmo, Virgínia Moraes e Mário Izaldino. A juventude precisa ter maior acesso à cultura popular, que precisa chegar às escolas e à imprensa, jornal, rádio e televisão. Outro lado importante e que caracteriza também o folclore é a passagem da tradição via oralidade. A Mestra Hilda, que tem 84 anos, tem bisnetos dançando em seu pagode. O Mestre Venâncio, com 83, também tem um filho dançando. E temos o Verdelinho, que montou um grupo com filhos e netos. Mesmo assim, são necessárias políticas públicas que garantam essa continuidade.
Como o sr. vê a "Lei dos Mestres", que garante uma bolsa de R$ 500 para nove mestres da cultura alagoana?
É uma iniciativa muito importante. Serão apenas nove mestres contemplados na primeira etapa, mas acreditamos que é um bom começo. No início, a Asfopal questionou alguns pontos, como a forma pela qual se daria a escolha desses mestres. Mas, após algumas alterações no edital, e com a escolha da comissão designada para escolher os contemplados, tudo foi resolvido e a iniciativa só vem beneficiar nossa cultura.
Em Alagoas já existem projetos desse tipo?
A Secretaria Estadual de Educação, por meio da Coordenação de Ação Cultural, faz um trabalho que leva os mestres para as salas de aula. Hoje são várias oficinas espalhadas pelo Estado. Temos o Eduardo, um mestre de guerreiro antigo que dá aula nas escolas de Penedo. Temos o Jota do Pife também passando seus conhecimentos, mas ainda é muito pouco. As escolas particulares precisam se engajar. Não bastam somente atividades esporádicas. O turismo de Alagoas poderia também divulgar nossas manifestações. Os folguedos alagoanos são totalmente desprezados pelo trade turístico. É preciso dar oportunidade para o turista conhecer nosso folclore.
O Engenho de Folguedos, realizado toda quinta-feira, no Museu Théo Brandão, seria um bom espaço para isso?
Pois é. Mas você não vê um turista lá. O pessoal que cuida disso ignora completamente. O Engenho de Folguedos é um projeto vitorioso. Nasceu dessa necessidade que os grupos têm de se apresentar e mostrou nosso potencial. É um projeto que uniu o útil ao agradável. E eu aproveito para convidar as pessoas que quiserem conhecer um pouco mais da nossa cultura a irem lá.Há alguns meses nós perdemos um dos maiores compositores de forró de Alagoas: Florisval Ferreira morreu no anonimato.
É esse o final reservado à gente do povo que produz cultura?
Infelizmente, o Brasil não tem memória. Até o grande Luiz Gonzaga teve dificuldade no final da vida. Em Alagoas, vários foram esquecidos: Jacinto Silva faleceu e ninguém deu uma palavra. Florisval Ferreira foi um artista que teve músicas gravadas por Jackson do Pandeiro e Trio Nordestino, mas morreu no anonimato. Rodolfo Cavalcanti, alagoano de Rio Largo, um dos maiores cordelistas do Brasil, que ninguém conhece por aqui, está sendo homenageado na França. São esses artistas que nós precisamos valorizar enquanto ainda estão vivos, para não caírem no esquecimento.
Em que pé se encontra o projeto que construiria uma vila com casas para os mestres dos folguedos de Alagoas?
O projeto está pronto há oito anos, desde a gestão da ex-prefeita Kátia Born. Por motivos burocráticos ainda não saiu. A idéia é criar uma vila com 50 pequenas casas para os mestres. O terreno já foi doado pela prefeitura. Fica no Tabuleiro e nele seria construída uma sede para a realização de oficinas ministradas pelos mestres. É um sonho para mim, mas possível de realizar. Basta boa vontade do poder público.
 


Comentários sobre Ranílson, publicados no Jornal Gazeta de Alagoas,
de 04 de agosto de 2007


Emmanuel Fortes Silveira Cavalcanti

Não consigo precisar quando conheci Ranilson França de Souza. Tempos realmente imemoriais. Sei apenas que nutrimos a vida inteira uma amizade fraterna que se renovava, a cada reencontro. Coisas dos apegos que tornam as distâncias pó e os encontros um imediato reacender de lembranças, coisas comuns e ideais compartilhadas e, esperadas como se pudéssemos retroceder no tempo, transplantar os sonhos e brincadeiras para o presente, ao mesmo tempo em que os convertíamos em concretização pela vida que levávamos, fazendo exatamente a continuidade do que um dia iniciáramos como uma atividade meramente lúdica.

Ranilson, filho de Seu Zeca e D. Gerusa, morava em Maceió e passava todas as férias escolares em Pilar, na casa de Ìnha (sua Tia, pessoa das mais discretas e bondosas que conheci, juntamente com Seu Pedro Arestides, um senhor solteirão que andava com uma tabica de Cipó Fogo, muito cobiçada por todos nós porque tinha uma escultura no nó, o que a tornava muito bonita). Vinha sempre com Ranúzia sua irmã, uma linda menina que inspirava paixões em sonhos juvenis de grande parte dos nossos amigos e em alguns de meus irmãos.

Deste seleto grupo fazia parte, Nizinho (Anísio de Sousa Filho) que morreu afogado pelos idos de 1974, na perigosa praia do Sobral, um choque e um trauma para nós. Privou-nos de sua companhia criativa muito precocemente. Também precocemente se foi Compadre Zenaldo (nosso compadre de São João e primo de Ranilson), em acidente automobilístico há cerca de quatro anos. Era o inventor que se encarregava de executar alguns de nossos planos como o de construir uma espingarda soca-tempero com o cano de um guarda-chuva que quase termina em tragédia, não tivesse ele amarrado a dita cuja (apelidada por ele de Zizuita) no tronco de uma jaqueira, pois ao detonar abriu-se em rosa, motivo de muitas gargalhadas anos depois de passado o susto, quando nos encontrávamos; Petrúcio da Tia Nerina, um artista plástico, estilista e inventor, que aposentado da Embratel ainda nos deve a retomada de sua verdadeira vocação; Dovinho (Dr. Mac-Douwell Fortes Silveira Cavalcanti), o garoto genial, que apesar de grave doença de infância, recuperado, presta inestimável serviço a medicina e a honradez da comunidade alagoana, ex-Secretário Estadual de Saúde; Anilza, Neilza e Neje (Aneilza e Aniege Gomes de Sousa) primas de Ranilson e filhas de incomparável Anísio de Souza e D.Izaura, ele Tio de Ranilson, ex-Prefeito de Pilar, adversário político de meu pai (Octacílio Silveira Cavalcanti) e homem das tradições folclóricas, juninas, natalinas, carnavalescas e patrióticas.


Os mais chegados eu e Papai Noé (Everaldo Gomes de Lima), ora chamado de Valdinho, por Ranilson, ou Sapo e Papai Noé (por ser o mais velho entre todos nós) por mim. Tinha ainda, correndo por fora, por estar mais próximos de nós apenas no São João, a bela menina Socorro Serafim e seu irmão, o sério Betinho (Adalberto Serafim).


Todos nos reuníamos em torno dos folguedos infantis, mas o que mais nos atraia eram os sonhos de criar, inventar, construir, participar das atividades lúdicas de seu Anísio. Quadrilha no São João, palanque para o Pastoril, a Chegança o Guerreiro. As perseguições a Banda Esquenta Muié, doidos para chupar o limão na frente dos tocadores de pífano, ou ainda correr atrás dos palhaços pelas ruas empoeiradas do verão, ou enlameadas no inverno, fazendo a chamada dos espetáculos “hoje tem espetáculo... às 8 horas da noite... arrocha negrada... e os gritos saiam a plenos pulmões para ganhar a senha, normalmente uma marca de carvão no antebraço (Dovinho levou uma pisa de papai porque chegou com a marca num dos braços). Ranilson era um palhaço, engraçado, animado, criativo e descontraído.


Seu Anísio tinha o espetacular Serviço de Auto-Falantes da Mercearia Santo Expedito, “uma organização Anísio de Souza, com música, música, sempre música”. Seu Anísio dividia a locução com Olival Duarte, uma extraordinária figura, falecido há pouco mais de seis meses. Nossa fixação, depois de mais taludos, era ser responsável pela locução junto com os adultos. Chegou nossa vez. Alguns de nós fazíamos à seleção musical, Ranilson era o locutor (há cerca de um ano escutando o Balançando o Ganzá, na época de carnaval, pela FM Educativa, o escutei anunciar Orlando Dias, Osvaldo Nunes, Ângela Maria e outros repetindo um de nossos repertórios da jamais esquecida Chã do Pilar). Montamos algumas peças de Teatro, comédia normalmente, que nos anos finais da década de 60, começo da de 70 fez absoluto sucesso junto aos jovens pilarenses.


Dois pequenos esquetes de Ranilson, encenado por mim como o Telepata, Petrúcio da Tia Nerina como Partner (no Pilar devidamente batizado de Patinete) e Papai Noé que olhava pelo buraco dos jornais que envolviam a mesa, a guisa de birô, soprando no ouvido de Peu, que “adivinhava em voz alta, encantando a platéia, que tinha como um dos presentes Aziz Gadelha (craque de futebol, também morto precocemente e de forma violenta) que levantou dúvidas quanto a nossa capacidade de adivinhar “é combinado, só acredito se acertar o que eu der”. Deu a carteira porta-cédula, passei na frente do biro, Papai Noé viu, soprou para Peu, advinhou. Delírio depois que Aziz gritou “não é marmelada, eu não combinei nada com eles”.


Pedi então um relógio, era o epílogo, passo na frente do palco. O ‘patinete’ advinhou, nova ovação. Pergunto então dia hora e minuto, mostrando a alguém da platéia para conferência. Papai Noé rasga o jornal pega o relógio de minhas mãos e corre para Peu “nove da noite, vinte e um minutos e quatorze segundos”. Vaia no princípio, depois aplausos e muita gargalhada. Era de fato uma farsa muito bem montada e engraçada, coisa que ainda hoje repercute quando reunimos os velhos amigos.


O outro foi encenado por Artur e a turma do bairro Pernambuco Novo:


O Homem Que Vira Peixe, imortalizado por Nunes Lima, num dos “A vida sem retoque”, do jornal Gazeta de Alagoas, depois de rir muito em nossa casa na Chã do Pilar ouvindo a narrativa.


“Durante toda a semana anunciou-se o grande espetáculo do Homem Que Vira Peixe”.


Benedita, futura esposa de Artur, comanda o chamado para o ilustre mágico. O povo apinhava as dependências da antiga Câmara de Vereadores, no primeiro andar. Entra Prof. Arthur (todo mágico é identificado como Professor), capa preta, chapéu a caráter, lenço vermelho no pescoço, sério, seriíssimo, como mandava a ocasião. Mãos para trás e, não mais que de repente, apresenta uma caçarola de alumínio, novinha, novinha, na mão direita. Na esquerda uma carapeba fresca, do tempo que carapeba era farta, em Pilar.


Coloca na frigideira, faz o movimento preciso para arremessá-la ao ar, dar três voltas e cair com o lado oposto no texto. Vaia, rolete de cana voando em direção ao mágico, fuga estratégica e comentários que empolgam nossos reencontros com muitas gargalhadas até os dias atuais.


Muitas histórias, muitas lembranças. Uma delas foi corretiva em nossas vidas: Tinha um homossexual cujo nome não sabíamos, mas, era conhecido como Tempero, fazia o Cachorro Quente mais cheiroso e gostoso, cujo cheiro já senti. Vendia muito na frente do inesquecível Cine Pilarense.


Num desses dias quentes de verão estava eu e Ranilson sozinhos na Praça Nossa Senhora das Graças, por 13horas. Passava Tempero do outro lado, começamos a gritar com voz anasalada “Tempêêêêro, Temperinho”... e insistíamos. Tempero, fazendo algo que nunca fizera, mudou de direção e caminhou para onde estávamos. Corremos para uma moita, um pé de fícus em formato de cadeira. Tempero nos alcançou e disse – sei quem vocês são. Você é sobrinho de Seu Anísio, e você é filho de Seu Otacílio, se não pararem com essa mangação vou falar com eles. Eu sou pessoa como vocês, porém sou diferente no meu jeito de ser, mereço respeito. Nunca mais fizemos gozação com quem quer que seja ou tenho algo diferente, doença, deficiência ou comportamento. Ficamos envergonhados. Comentamos esse episódio de forma pitoresca, rimos, mas aprendemos para a vida inteira.


Na última prévia carnavalesca o encontrei no Museu Theo Brandão. Prometemos-nos nunca mais adiar escrever nosso livro de memórias, junto com o remanescente Papai Noé, que guarda ainda hoje o martelinho de quebrar pata de caranguejo que levou do Bar Coqueirinho, de Fernão Velho, na última grande farra que fizemos. De 10 da manhã às 20h. Testemunho este encontro Ivan Barsan, amigo coralista, que ficou algum tempo proseando conosco.


As memórias estão preservadas com nossa versão. Vamos escrever esse livro, os que remanescem, com a lacuna da alegre forma de ver o orgulhoso pilarense, que foi Secretário de Estado da Cultura, na mesma época que outro contemporâneo honrava Alagoas com sua pouco reconhecida honestidade na Secretaria de Estado da Saúde, Mac-Dowell Fortes. Disse-me Ranilson nesse dia “estou orgulhoso de ser pilarense, ter um amigo de infância na SESAU, e reencontrar os velhos folguedos e sonhos de uma vida digna através de nossas ações nos dias atuais”.


Também sou tão besta quanto ele, emotivo e vibrando com as possibilidades de fazer, pelo fazer. Ele fez por merecer as homenagens que lhe renderam, com justiça os amigos do Folclore, das artes, da cultura e da pedagogia de Alagoas. Amigos para sempre!


(*) É médico.





RANILSON, MESTRE, GUERREIRO, AMIGO


| Josefina Novaes




Conheci Ranilson quando em 1986 fui trabalhar na Secretaria Estadual de Cultura. Logo depois assisti a uma reunião da recém criada Associação dos Folguedos Populares de Alagoas (Asfopal) e de imediato fiquei encantada não só com seu objetivo, o da preservação dos nossos folguedos e danças mas, com os mestres associados e sobretudo com o respeito e dedicação como eram tratados. Por falta da secretária da Associação fui convidada a redigir a ata daquela que seria a primeira das muitas reuniões, que (sem saber naquele momento) eu iria assistir. Tornei-me sócia efetiva e afetiva da Asfopal, e já se vão 20 anos.


Como foi gratificante entrar no universo das nossas tradições populares, conhecer e conviver com os autênticos representantes de nosso folclore que através de suas danças e canções, como ninguém, revelam a riqueza da alma deste povo, produto da mistura de raças, costumes e tradições, fonte de arte e sabedoria.


Comandando, sempre, lá estava o Professor Ranilson, como era chamado, incansável na sua luta pela conservação do nosso autêntico folclore. Fazia-se respeitar e ser querido não só pelo seu vasto conhecimento e sim pela maneira como se dirigia a eles, como mestres em sua arte, como seres humanos que merecem atenção e carinho.


Calmo para tomar decisões, primeiro dizia “vou estudar” e sempre dava certo. Honesto, estudioso, e dono de uma memória privilegiada sabia quando, como e com quem podia falar. Humilde, percorreu o caminho da sabedoria. Teimoso, lutava até o fim para conseguir o que queria. Agradou a muitos, desagradou a poucos. Algumas vezes foi criticado, na sua luta pela preservação do autêntico, de “querer engessar os grupos”, quando na verdade ele estava pedindo respeito as nossas raízes. Não gostava de fazer pedidos nem favores para ele e os de sua família, só para o folclore, timidamente.


Nas apresentações dos grupos, estava sempre com satisfação chamando em cena os pastoris, os guerreiros, as baianas, as cheganças etc. Ironicamente, no mês de agosto, mês do folclore, Ranilson fez seu atuar derradeiro, descerrou a cortina, saiu de cena... Deixou boas lembranças, muita saudade.


Para nós, seus amigos, fica a saudade de sua companhia nas muitas andanças pelo interior do Estado, mapeando nosso folclore, geralmente nos fins de semana (o que faremos neles?) ou aos domingos, para um passeio regado de uma “cervejinha” (como passaremos sem eles?).


Com certeza sua chegada foi uma festa comandada pelos seus amigos que se foram antes; mestra Joana Gajuru, mestre Paulo Olegário, mestre Jorge, mestre Pedro Leal, mestra Virgínia Morais, mestra Celsa e Júlia, mestra Maria do Carmo, Professor Pedro Teixeira, Dr. Théo Brandão, entre outros. Quanta gente boa! Já dá para criar uma Associação. Que tal a AsfoCéu? Produtivo, com certeza já está cuidando de novos projetos.


Obrigada amigo, irmão, companheiro, pela sua amizade sincera, por saber ouvir, pelos conselhos, pelos bons momentos de respeito e cidadania, de festa e cultura.


(*) Secretária da Asfopal





ACERVO VIVO DA CULTURA POPULAR


| Cármen Lúcia Dantas



Aparentemente Alagoas não tem do que reclamar quando o assunto é acervo de cultura popular. Exemplos isolados de nomes representativos da história local sinalizam para a importância da documentação de manifestações materiais e imateriais, mas são insuficientes suas iniciativas para dar conta da demanda produzida no estado, ao longo dos anos.


Entre os que se anteciparam na tarefa de catalogar a produção local temos estudiosos como o folclorista Théo Brandão, cujo museu homônimo abriga um dos mais importantes e abrangentes acervos de Alagoas. 


Outras iniciativas particulares, a exemplo do material legado por pesquisadores como José Aloísio Vilela, somam-se ao elenco dessa tipologia na capital e no interior. São conjuntos compostos por peças das mais diversas manifestações regionais, algumas já extintas e outras que sobrevivem relativamente preservadas. 


No mapa da preservação, podemos demarcar pontos específicos, a exemplo do Museu Manoel da Marinheira, em Boca da Mata, que expõe o significativo acervo do industrial Jorge Tenório, com a particularidade que o caracteriza: ser restrito às peças do grupo de escultores da família de Manoel da Marinheira.


Ainda em Maceió, a artista plástica Tânia de Maya Pedrosa se prepara para abrir a Casa do Imaginário, cuja coleção com mais de 1500 trabalhos, entre objetos folks e plásticos, é apontada como uma das melhores do país no gênero. 


Contudo, tratamos aqui de iniciativas louváveis, mas pontuais, que preservam apenas uma parcela da produção local, conforme a área de interesse do colecionador. Ou seja, é notório o fato de Alagoas se ressentir da falta de uma política efetiva no campo do registro audiovisual de suas manifestações populares (folguedos, festas típicas, rituais). Outro agravante é que de modo geral os colecionadores têm manifestado maior interesse por objetos da cultura material. O próprio IPHAN só recentemente passou a registrar o imaterial da cultura, iniciando esse mapeamento com o registro do acarajé, na Bahia, e o com reconhecimento do toque dos tambores, de São Luis no Maranhão. 


Ainda que possamos agregar às tentativas preservacionistas a realização de fotógrafos e cineastas que se debruçam sazonalmente sobre a produção cultural, a descontinuidade e o fato de que as atenções estão focadas na arte em si e não na documentação, comprometem o resgate e a sistematização contínuas. 


Mesmo que algumas instituições locais como o Misa (Museu da Imagem e do Som) reúna parcela importante dos registros sonoro e visual, contudo, sua reserva técnica é incipiente. Da mesma forma, o acervo do Museu Théo Brandão (com pouquíssimas gravações preservadas, algumas delas feitas pelo próprio dr. Théo) sofre as conseqüências do desgaste dos 14 anos em que a instituição permaneceu fechada ao público.


Fizemos esse preâmbulo sobre a relevância da documentação para enfim falar daquele que hoje representa um dos grandes expoentes da preservação da cultura popular alagoana, principalmente no que se refere aos bens imateriais: Ranilson França. 


UM TRABALHO SINGULAR


Podemos afirmar que o legado deixado pelo folclorista representa um rico panorama da produção local. O trabalho de Ranilson França constitui um divisor numa linha imaginária iniciada com Théo Brandão e prosseguindo com o professor Pedro Teixeira. Guardadas as diferenças que caracterizam a ação de um e de outro, o fato é que eles pertencem à mesma linhagem e se aproximam nos campos do registro e do resgate. 


Ranilson, ao longo de sua vida profissional, seguindo as referências dos mestres, usou os meios de que dispunha para fazer valer a idéia de que reduzir a produção cultural a um sistema de “castas” nunca foi a melhor opção para se chegar a identidade de um povo. 


Com a sensibilidade que lhe era peculiar, desde muito cedo, identificou na gente simples a possibilidade de extrair o máximo em originalidade e identidade no terreno da cultura. E o fez com as próprias mãos como um garimpeiro moderno. A Ranilson não bastava identificar a produção artística dos inúmeros mestres e mestras nas mais diversas manifestações - do reisado à marujada, do coco ao samba, do pífano à viola. 


Após a identificação ele abria caminhos que levassem à continuidade. O segundo passo, inteligentemente, era agrupá-los ao redor de um objetivo único: mantê-los unidos e, de certa maneira, vivos e visíveis. A visibilidade, ao lado do reconhecimento e da sobrevivência, formava a tríade de seu trabalho. 


Cultivava o seu apurado senso de continuidade, sempre contando com o apoio de uma meia dúzia de aliados, talvez menos, (entre estes citamos a professora Josefina e o médico Gustavo Quintela). Com eles Ranilson construía a base de uma estrutura que à duras penas servia de apoio às suas iniciativas. E isso não apenas no âmbito das políticas apoiadas pelos órgãos e instituições públicas ou particulares ligadas à cultura. Ao contrário, individualmente ele avançava por novas áreas, como o rádio e a televisão. Seus programas radiofônicos e televisivos, como o conhecido e popular Balançando o Ganzá, constituem um mosaico da produção local. Neles, o foco na preservação e na documentação é exercitado da maneira mais original e permanente que já tivemos notícia em nosso estado. 


Mesmo não dominando a técnica, tampouco os suportes audiovisuais, Ranilson usou da intuição para chegar ao necessário. E se hoje temos Hildas, Virgínias, Benons, Áureas e tantos outros tirados do anonimato devemos aos mais de vinte anos em que alternou sua presença no rádio e na TV. 


E, para além dos minutos de fama, efêmeros, o trabalho contido nas gravações do Balançando o Ganzá constitui um inestimável arquivo das manifestações dos folguedos populares em Alagoas durante os últimos anos. É o mais fiel e mais puro registro dos mestres e mestras, de suas histórias de vida, de seus cantares, seus motes, suas dificuldades, suas glórias.


Ousando inovar


Apesar dos esforços empreendidos por Ranilson, após a sua morte corremos o risco de ver perdida essa documentação, uma vez que o rico conjunto formado por cassetes, CDs e DVDs, não passou ainda por nenhum tipo de tratamento. Por hora não há sinal de projetos voltados para dessas imagens e até mesmo para a transposição para suportes adequados. 


Novamente esbarramos na descontinuidade que transforma ações anteriores em muito pouco do ponto de vista da documentação. O descaso exclui das novas gerações a possibilidade do acesso a esses recursos auxiliares da pesquisa.


Enquanto nomes como Pedro Teixeira e Ranilson França foram além do que lhes cabia, o presente tem uma dívida com a história. Falhamos ao optarmos pela descontinuidade e por políticas eternamente calcadas na idéia de que o melhor está por ser descoberto. 


Ranilson, além de não pagar por esse pecado, ainda nos dá a chance de nos redimir, pois deixou em seu gabinete inúmeras fitas conservadas esperando pela nossa disposição de continuidade. Outro passo que sedimentou a construção do tipo de preservação exercitada em seu tempo: a criação da Associação dos Folguedos Populares de Alagoas (Asfopal). 


Soma-se à sua biografia o inequívoco respeito pelos produtores de folclore, identificando-os nominalmente. Ranilson quebrou um paradigma recorrente entre os folcloristas mais ortodoxos, que defendem o anonimato na produção da cultura popular. 


Ranilson França garantiu cara e nome próprios aos tantos mestres, artesãos, violeiros, cantadores, com os quais convivia. Repetindo: graças a essa atitude inovadora, verdadeiramente revolucionária, hoje Alagoas (e o parte do Brasil) conhece Hilda, Verdelino, Vitória, Juvêncio, Benon, Virgínia e tantos outros nomes tornados astros e estrelas da cultura alagoana, como artistas, mestres e mestras responsáveis por autênticas manifestações dos folguedos populares. A mestra Joana Gajuru talvez tenha sido a primeira das estrelas radiosas dos folguedos alagoanos cujo nome, e talento, foi espalhado por Ranilson. 


Para os mestres e mestras dos folguedos contemporâneos das alagoas, o folclorista-companheiro Ranilson foi imprescindível na conquista da “cidadania artística”. 


Seu trabalho extrapolou os limites geográficos do nosso estado. Antônio Nóbrega, um dos maiores criadores cuja base de inspiração é a cultura popular, teve em Ranilson um parceiro destacado em suas pesquisas. Periodicamente, o genial brincante pernambucano visitava Alagoas e era ciceroniano pelo fundador da Asfopal. Juntos, percorriam os povoados, as feiras, os quintais onde floresciam as artes do povo.


A pergunta que fazemos nesse momento é: até que ponto a falta de políticas adequadas e responsáveis não devolverá os mestres alagoanos ao anonimato? Pensemos.




RANILSON: DE SOUZA A FRANÇA


| MARCOS VASCONCELOS FILHO


Ainda neste instante - o quê? estamos em finzinhos de julho - tornei a visitar os primeiros escritos do mestre que, entre nós, fora o professor Ranilson França de Souza. Só que o mestre - humilde nos gestos, largo no coração - não começara Ranilson França, não, como passamos a conhecê-lo. Iniciara-se, sim, assinando-se Ranilson Souza, antes de se inclinar de todo pro sobrenome materno de D. Geruza. Estes escritos andam por aí, esparsos em publicações das Alagoas, somando, pelo que contei - jornal pós jornal, livro pós livro, revista pós revista -: mais duma mão de dezenas deles. Talvez, desfeitos em soluços e refeitos no liame da fé e da esperança de seu legado, sua esposa e seus filhos pudessem coligi-los pra nós que o (re)conhecemos: seus admiradores.


É curioso como que retroceder algumas décadas e ver que, quase trint’anos antes, o mestre já então se bandeava todo pra arte que logo cedo aprendera a amar nas terras de Costa Rego e de Arthur Ramos - este último, tão de suas leituras, no que não deixara, pra agrado seu, de passar seus olhos, por detrás dos aros dos óculos, no clássico entre nós que é O folk-lore negro do Brasil (1935).


Na sua Chã do Pilar, Ranilson passou a conhecer, junto dos seus, e os seus próprios, gentes de toda a sorte e com toda a sorte no mundéu de mistério da vida. Menino havia sido ele de tomar banho de lagoa, enxugar-se ao vento, nadar nos seus à-vontades, subir em mangueira e provar do doce das bagas da jaca. De tudo que é jeito jaca conheceu, porque amou gentes como se ama a si mesmo: cheiro de gente, sabor de povo. Jaca da jaqueira, jaca do remelexo das cabrochas danadas: gomo e gama. E se gamou mesmo foi desta aventura que, num dizer bem-dito, e bendito, era arte que o fazia renascer, e ela mesma renascendo nas suas cores e nos seus gingados, no seu paladar e à mão do bom artesão, na sincronia da dança e no contratempo do improviso, nos brasões e nos candomblés, nas adivinhas e nas lendas, nos causos e nos desafios, nas parêmias e nos mitos, nas superstições e nas crendices, na oralidade e no cordel, na indumentária e na instrumentária, dos esquenta-mulheres aos trios dos axés, na saliva e no gritar, no chão e nos pés, entre meios-tons e “nas luzes e sombras, nos largos, atos, ornatos e espaços”, conforme uma vez fui e disse me referindo a este tibungo sincrético nas, das terras nossas.

“O Folclore tem que ser essencialmente coletivo”, exigira o mestre. Era a própria gama de um homem apaixonado tal criança diante de palhaço de circo, no chão, esparramado, rolando de riso. Desde menino, de volta à Manguaba, viu nas novenas de Santo Antônio ou nas contas dos terços rezados por uma das tias a religião mesclar-se toda com aquelas manifestações de suas gentes e das gentes de outros cantos - conjunto qual ao qual, um dia, um arqueólogo inglês deu por nome o neologismo “folk-lore”. Isto há tantos anos que nem sei mais quantos. Um cento deles. Uns cento e mais. 


Mas: inda era Ranilson Souza. Porque voltamos um triângulo decenal pra encontrar ainda o garoto, vindo estudar no Guido de seu amigo padre Teófanes e morando no seu Trapiche, no que nos sussurrava, a nós de mais cá no tempo, a formação que jamais o abandonaria: a do artista, voltado não apenas pro desenho, depois ele mesmo pedagogo, já de barba encanecida, ao mesmo apetite de meninão, mapeando gestos pelo Estado, batendo cada canto em busca de encanto, batendo três vezes em fusca também o motor. De então estas viagens não o abandonaram mais. Viagens físicas e viagens sentimentais. Estas guiando aquelas. Assim é que, lentamente, entre escritos e presenças, o folclorista começou a se delinear. Bosquejo de Ranilson França por ele mesmo: Souza.


Foi-se então dando a registrar o populário em nosso Estado, classificando, qual Théo Brandão e José Maria Tenório Rocha, as suas manifestações: dos folguedos natalinos (reisado, guerreiro, bumba-meu-boi, chegança, fandango, marujada, presépio, dois pastoris, maracatu, taieiras, baianas, quilombo, cavalhada), dos folguedos carnavalescos (cambindas, negras da Costa, samba de matuto, caboclinhas), dos folguedos das festas religiosas (Mané do Rosário, bandos), dos folguedos populares com estruturas simples (boi e ursos de Carnaval, gigantões ou bonecas, a cobra jararaca), os torés (de índio, de Xangô), além das danças de São Gonçalo, das rodas de adulto, da quadrilha e do nosso coco. Somando-se bem direitinho, dão trinta dedos de expressões alagoanas - o exato número de quando pela vez primeira Ranilson, então e ainda Souza, iniciou o desenho do futuro mestre França, publicando primogênito artigo em homenagem a mestre Joaquim Vitorino. Mais tarde, as conclusões do ensaísta estariam certas: “Alagoas é o Estado brasileiro que possui a maior diversificação em folguedos”. Isto sem falar noutras manifestações muito nossas, como o pífano do Raimundinho e daquele mestre João do Pife que fora alvo de mais de um artigo de sua parte.


Vozes e fozes


Ranilson é foz duma Escola de que sou suspeito pra falar. É, espiritual e “coracionalmente” (como sugeria, insolitamente adocicado, o velho Graça nas suas Cartas), “neto” da Zona da Mata de seu mestre querido: um de queixo simpático e rasgado riso de lua crescente de curioso, que fora o neste começo de ano centurial mestre Théo Brandão (1907-1981). É desaguamento da minha Viçosa ele. Ela fora sua avó. Ele fora seu neto. Bebera daquelas águas: de Souza a França. Empolgara-se qual lírica, telúrica, candidamente o professor Pedro Teixeira por “todas as manifestações” nas suas Andanças pelo Folclore (1998). E amara desmedida, acendradamente, estes gestos este neto barbado, observador e tímido qual menino sempre, porém discreto e atencioso qual de verdade homem. Não fora um Patativa, pois que falava pouco. Mas amara dum jeito particularmente seu. Um jeito seu empático todo. De coração. E energia.


Motorzinho dele, qual um fusca de carne, lançara a sua voz esta foz, vozeando pela corneta como que buzinando diante da passarada. O seu ganzá mil e uma maravilhas sussurrava. Expressava-se didática, pausada, ritmadamente o seu tocador-maestro, compartilhando conosco o seu saber do sabor das gentes, dos mestres e dos meninos, dos tambores, dos baixos e da triangulação sugestiva dos baiões, dos xaxados, das mazurcas, dos xotes, das rancheiras, dos arrasta-pés, dos sambas, dos forrós de muitos modos, no calor danado do suor movido, neste mundo do repente, de repente, de Manoel Neném; do saber sapiente de Cascudo; do reisado do Bananal de mestre Osório; do seu Ernesto do Jacaré; da rainha do guerreiro, mestra-baiana Terezinha, com seus dezessete filhos; do João de Lima e das sentinelas de mestre Alfredo; do pagode do Antônio do Algodão; do Pedro Leal das baianas; do cordel do Rodolfo Cavalcante; das trovas do Chico Nunes de Mário Lago; do majestoso coco de Jacinto Silva - numa meteorologia mágica dos ciclos solsticiais carnavalescos, pascoais, juninos e natalinos, à fogueira de pulsações onde arderam Mello Morais (filho), Júlio Campina, Moreno Brandão, os cônegos Machado de Mello e Teotônio Ribeiro, Barbosa Júnior, Brandão Vilela, Ezechias da Rocha, Alfredo Brandão, Arthur Ramos, Abelardo Duarte, Luiz Lavenère, Paulino Santiago, Zeca Pimentel, Lages Filho, Théo Brandão, José Maria de Melo, Félix Lima Júnior, Diégues Júnior, Aloísio, Vivaldo e Sinfrônio Vilela, Pedro Teixeira, Chico Tampa, José Maria Tenório Rocha e este menino-mestre que houvera sido Ranilson França de Souza.


Ainda agora fui reler nos meus arquivos do mestre as duas últimas vozes suas: o último artigo e o unigênito livro que nos deixou. Remate. Já havendo escrito há alguns anos um artigo sobre, volveu a Lampião - o místico e vesgo rei de muitas mortes, coronel sem terra dos sertões tardiamente feudais da moral sertaneja, o Virgulino Ferreira da Silva (1898-1938) escrito pintado pelas páginas de Estácio de Lima e de Frederico Pernambucano de Mello.


E, pós o capitão, o mestre Ranilson viu-se entregue ao seu gosto de admirador pelo Neném do Acordeão. Seu livro, saído do forno em maio do ano passado (portanto três meses apenas antes do desaparecimento de seu autor em madrugada ingrata), trata-se duma catalogação, a mais completa possível, do repertório dum dos maiores sanfoneiros do Brasil, herdeiro dileto do velho Lula, que é Dominguinhos. Aí, neste De Neném a Dominguinhos, revela-se ao lado do artista, do ensaísta e do folclorista, o paciente pesquisador, reunindo vida, entrevistas, discografia e fotografias do forrozeiro com cara de menino, aparecido pela primeira vez em disco em 1964; no que, nascido no Alto da Boa Vista, na friazinha terra serrana de Garanhuns, mais uma vez faria o biógrafo retornar a sua nascente: a mesma Zona da Mata, só que desta feita traspassando-a a fim de alcançar as próprias origens do músico nos agrestes Paulo Jacinto e Palmeira dos Índios. E uma vez ainda, incontidamente, percorreu o Brasil o mestre, feiras muitas, até alcançar mais de 60 vinis e compactos, mais de 600 músicas de Dominguinhos. 


De mestre Ranilson suas iniciativas em defesa dos mestres, dos meninos e dos seus folguedos são o testemunho maior dum coração condoído e doado em prol desta gente rica culturalmente e pobre porque desassistida. Pedagogo, artista, fundador de museus (como o a Manoel Neném), pioneiro em projetos de assistência a estas expressões (qual a Asfopal), educador dos colégios Sete de Setembro e Édson de Carvalho (como também o fora do Cesmac), além de apresentador (ele que sonhou em mais menino ser locutor esportivo) do seu original “Balançando o ganzá”, ora ecoa e nos desperta da necessidade destas cores - quais as do pastoril da Diana, nosso popularíssimo folguedo - que encontraram nele a sua compreensão de conselheiro, o ombro seu filial.


Somos nós, ele e eu, a seu modo, fozes da Viçosa que ele tão bem conheceu. E viveu sendo ele um dos nossos irmãos de passado brasileiramente antropológico. Viçosa culturalmente múltipla qual Alagoas, qual o Brasil, cujo entendimento já há três décadas Ranilson fixara: “Da cultura indígena herdamos o mistério das florestas, os encantos da fauna e da flora, o colorido exuberante da paisagem; do português, além de nossa base cultural, a energia do conquistador unida à saudade da terra e do lar distante; do africano, a tristeza, a sensualidade, a resistência ao sofrimento e a resignação”.


Dessarte, cada um de nós, brasileiros no geral, alagoanos em particular, filhos daquela tríade, devemos saber conjugar as energias dos mistérios dos encantamentos, que só se revelam àqueles que se resignam. Tão bom seria se deixássemos aquela “sonolência doentia” deveras criticada pelo mestre Aloísio Vilela e nos fizéssemos artistas quais os Leocádios da Mata Verde, os Tatajubas da Boa Sorte, os Manuéis da Ingazeira, os Linos do Sabalangá ou os Joões Félix, os Catuabas, os Jacus, os Aprígios, os Manuéis Silva, os Luízes Libânio, os Manuéis Lourenço... ô, se seria...

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